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O papel da conservação do solo no contexto de eventos climáticos extremos

Postado em 28/05/2024 às 08h53 | Por Assessoria de Comunicação CDA

A agricultura está preparada para lidar com as mudanças climáticas? Uma breve história do uso do solo no Brasil

A agricultura no Brasil teve início quando os índios cultivavam suas roças de subsistência. Com a colonização e a chegada de agricultores europeus, vieram também as técnicas de cultivo por eles utilizadas no velho continente.  As técnicas de cultivo se baseavam na derrubada da vegetação natural, queima dos restos vegetais e aração do solo. Técnicas ainda vistas hoje no século XXI. Na Europa, o revolvimento do solo se presta principalmente a expor o solo a temperaturas mais elevadas na primavera, com a finalidade de antecipar o período de plantio. Outra finalidade é a incorporação da matéria orgânica, que em locais de baixa temperatura tem sua decomposição muita lenta quando mantida em superfície.

Em um país onde a maior parte do território se encontra entre o Trópico de Capricórnio e a linha do Equador, é no mínimo curioso que essa técnica tenha persistido. Uma possível explicação está no próprio clima, que de tão favorável à agricultura, mesmo utilizando-se práticas de cultivo inadequadas ainda se obtém grandes produtividades. Além disso, vivemos em um país continental, de modo que se uma área não se mostra mais produtiva, abre-se outra.

Um trecho do livro “Escravidão” publicado em 2022, de autoria de Laurentino Gomes, relata a agricultura no Brasil no século XIX. “...Nos primeiros anos após a derrubada da floresta, o solo era fértil e extremamente produtivo. A erosão provocada pelas chuvas, no entanto, logo fazia escorrer serra abaixo as camadas superficiais de nutrientes. A terra lavada que ficava para trás era pobre. Os cafezais perdiam o viço, e a produtividade caía drasticamente. Em vez de desenvolver técnicas mais duradouras de tratamento do solo, o fazendeiro preferia abrir outra área de floresta e reiniciar o ciclo anterior. Isso fez com que as terras da região rapidamente se esgotassem...

Com o tempo, houve uma evolução significativa nas técnicas de cultivo, quando os plantios passaram a ser feitos em nível, de modo a frear a velocidade da água da chuva, diminuindo os estragos provocados pela erosão.

Mais tarde surgiu a técnica de construção de terraços, que ao cortar as rampas, diminuem o espaço de escorrimento da água, diminuindo o processo erosivo.  Além disso, servem ao armazenamento de água no local de cultivo, mantendo o solo úmido por mais tempo. Os terraços foram por muito tempo à técnica mais importante de conservação do solo, no entanto, se mostrou um obstáculo ao trânsito de grandes máquinas agrícolas que foram surgindo com o avanço da tecnologia. Outro ponto é que, se tratando de pastagem, os terraços tradicionais não suportam o pisoteio constante dos animais que formam corredores para a passagem da enxurrada e acabam por se romper. Hoje os terraços são ainda uma ferramenta importante, mas precisam estar inseridos num contexto onde outras práticas estão associadas.

Voltando a tratar do revolvimento do solo, a pesquisa agrícola em regiões tropicais evoluiu a ponto de concluir que não se faz necessário o revolvimento sistemático do solo para o cultivo, já que a temperatura do solo não é uma questão para a agricultura brasileira. Neste contexto surgiu o conceito de “Sistema de Plantio Direto” (SPD).

O SPD teve início no Brasil, nos anos 70 do século XX no Paraná, por Herbert Bartz, em Rolândia, e por Manoel Henrique Pereira (Nonô Pereira) e Franke Djkstra, na região dos campos gerais, também neste estado. Desde então esse sistema vem alcançando cada vez mais adeptos. Trata-se da semeadura sem revolvimento do solo, diretamente sobre a palhada da cultura anterior, mantendo o solo coberto, buscando a diminuição do processo erosivo, a redução da temperatura do solo, a manutenção da umidade e da matéria orgânica e, consequentemente, da fertilidade do solo, além da diminuição da disseminação de doenças. O SPD tem sido a ferramenta mais importante contra a degradação do solo, devido ao seu amplo alcance.

No entanto, o SPD tem mostrado limitações no contexto da agricultura convencional, uma vez que, devido ao revolvimento na linha de plantio ocorrido pelas máquinas agrícolas e ao excessivo uso de herbicidas, a degradação da palhada se dá de forma rápida, de modo que a cobertura seca não resiste até o final do ciclo, deixando o solo descoberto. Além disso, a fina camada de palha mantida no sistema não é capaz de evitar por completo as erosões em caso de chuvas intensas e concentradas, eventos cada vez mais frequentes.

Um exemplo foram as fortes chuvas ocorridas no sul do Brasil no ano de 2023, em que as lavouras sofreram graves danos por erosão ou alagamento. Ou ainda o episódio de seca intensa e altas temperaturas que causaram grandes perdas na agricultura nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte do País, evidenciando que a agricultura que praticamos hoje está vulnerável às mudanças do clima. Já as chuvas de maio de 2024 no Rio Grande do Sul, devido a sua intensidade já se enquadram em um sinistro evento histórico onde além de prejuízos materiais, até o momento imensuráveis na agricultura, ocorreu também diversos colapsos de infraestrutura e perdas de vidas humanas.

Através da observação da natureza surgiu o conceito de agricultura conservacionista, que tem como preceito a promoção da saúde solo, saúde das plantas e saúde das pessoas. Neste contexto nasceu em Santa Catarina o Sistema de Plantio Direto de Hortaliças (SPDH), desenvolvido pela EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) como alternativa para pequenos horticultores, mas que vem ganhando força em propriedades maiores, abrangendo um número cada vez maior de culturas e alcançando outros estados e países. Já são mais de 30 anos de pesquisa e extensão neste sistema que tem três princípios básicos: o revolvimento mínimo do solo; a rotação de culturas e a cobertura permanente do solo.  Os resultados deste trabalho tem sido o aumento da renda dos agricultores por meio do aumento da produtividade, diminuição do uso de agrotóxicos, especialmente herbicidas, diminuição da necessidade de fertilizantes, redução no consumo de água e promoção da saúde do solo, das plantas e das pessoas envolvidas.

O Engenheiro agrônomo da EPAGRI Marcelo Zanella relatou que as áreas com SPDH não sofreram danos durante as fortes chuvas de 2023, mesmo em áreas mais declivosas. Isso se deu pela volumosa cobertura, que evitou a erosão e aumentou a capacidade de absorção de água pelo solo, evitando alagamentos.

Cultivo de hortaliças em sistema convencional e SPDH (fotos: Marcelo Zanella)

Outra ferramenta de enfrentamento das mudanças climáticas é a integração. Entende-se por sistemas integrados os cultivos envolvendo duas ou mais culturas na mesma área. São exemplos destes sistemas a integração lavoura-pecuária (ILP) e integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), sendo o primeiro mais comum e já implementado com sucesso em áreas de pastagem e culturas anuais.

Os sistemas integrados vão de encontro com os princípios do SPDH; ambos pregam a manutenção da cobertura vegetal, seja ela seca ou verde, e a rotação de culturas. Surgem como alternativa para a recuperação de áreas degradadas, tendo como principais vantagens o efeito sinérgico entre as culturas, com a fixação biológica de Nitrogênio, o controle de pragas e doenças, a melhoria na produtividade e qualidade das pastagens, manutenção da palhada para as culturas anuais e redução do processo erosivo do solo.

Vale ressaltar que uma pastagem bem manejada é, por si só, uma ferramenta de controle da erosão, pois fornece total cobertura do solo, evitando o arraste de partículas. No entanto, quanto maior o número de espécies envolvidas no processo produtivo, melhor encaixado fica o sistema no conceito de agricultura conservacionista, pois a maior diversidade de plantas resulta em diversidade de macro e microrganismos que contribuem para a saúde do solo.

É relevante lembrar que estes conceitos não são novos, mas já vinham sendo demonstrados por personalidades marcantes na agricultura, como Anna Maria Primavesi (engenheira agrônoma, pesquisadora e professora, precursora da Agroecologia no Brasil), e que agora, quando a realidade das mudanças climáticas bate a nossa porta, estão sendo resgatados. A humanidade volta o olhar para a natureza em busca de soluções para os desafios que o presente expõe e o futuro reserva. Possuímos uma grande capacidade de adaptação e quanto mais cedo aceitarmos as mudanças, menos iremos sofrer com elas.

Voltando à pergunta inicial, talvez uma boa resposta seja: temos conhecimento e mecanismos suficientes para solucionar os problemas advindos desta mudança, porém este conhecimento ainda não encontrou espaço na agricultura. Sua ampla divulgação e adoção por agricultores convencionais são indeclináveis, além da urgência de ser pauta fixa dos instrumentos governamentais. Por outro lado, a população precisa ter sapiência para entender que nosso consumo impacta o planeta, e que este tem recursos finitos.

Por Elisa Adriano

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